No momento em que os Israelitas saíram do Egito e D’us dividiu o mar para que eles pudessem passar, os anjos quiseram cantar. Entretanto, D’us ordenou que Moisés e os Israelitas fossem os primeiros a cantar. De acordo com a Torá, os homens deram início a cantoria, seguido pelas mulheres e, por último, foi a vez dos anjos. Esta bela passagem de Shemót 15:21 é abordada no Midrash de autoria de Rabbah. Segundo o autor, Miriam a profetisa pegou um tamborim trazido do Egito e todas as mulheres que estavam presentes a seguiram dançando e cantando. Contudo, o comentarista rabínico Pitron Torah, na parashá Haázinu, oferece uma descrição diferente, vejamos:
התחילה מרים ונשים בשירה, ואחר כך אמרו ישראל, ואחר כך מלאכי השרת עמהן
“Miriam e as demais mulheres começaram a cantar e, posteriormente, os homens e os anjos as acompanharam”.
É bem provável que o autor tenha adotado esta postura buscando enaltecer a importância das mulheres na tradição judaica. Lembremos que foram as mulheres que salvaram, educaram e acompanharam Moshe. Assim, nada mais justo que ELAS pudessem iniciar o cântico de gratidão à D’us após a saída do Egito. No texto, cabe destacar uma interessante declaração feita pelo autor: “Por mérito e direito, as mulheres Israelitas foram resgatadas do Egito”. Ele também explica o motivo pelo qual as mulheres haviam levado os instrumentos musicais:
ותען להם מרים – משה אמר שירה לאנשים, הוא אומר והם עונין אחריו, ומרים אמרה שירה לנשים
As mulheres justas tinham plena convicção de que D’us faria milagres. Assim, já se preparando para render graças ao Eterno, levaram os tamborins do Egito.
Rashi comenta que Moshe cantarolava de modo altivo com os homens, enquanto Miriam cantava pelas mulheres que, até aquele instante agiam passivamente:
ותען להם מרים – משה אמר שירה לאנשים, הוא אומר והם עונין אחריו, ומרים אמרה שירה לנשים
O comentário de Rashi suscitou vários debates em relação à permissibilidade da postura de Miriam diante dos homens. O Rabino Yohanan Lurie (Alsácia-Lorena, 1440-1514) pondera em seu comentário (Meshiva Nefesh) os motivos pelas quais as mulheres não cantarem a “Música do Mar”, tal qual como o fizeram os homens. Em seu comentário, o Rabino Lurie explica que as mulheres eram proibidas de cantar na frente dos homens, enquanto estes últimos estavam transbordando euforia no cantar, expressando profunda gratidão pelos milagres realizados por D’us:
מאחר שהוא שיר ויאמר בקול רם צריכות לקצר לפני האנשים, כי קול באשה ערוה, על כן לא שרו רק לפי המחוייב כדי להזכיר הנס
O Rabino Lurie cita uma declaração do Talmud que afirma que ouvir o cântico de uma mulher é demasiado indecente. As mulheres devem limitar-se a cantar enquanto os seus esposos fazem a leitura do shemá. Contudo, é interessante salientar que o autor não proíbe o ato de cantar… ele deve apenas ser limitado. É sabido que na época do Rabino Lurie, as mulheres solteiras costumavam cantar em casamentos com a intenção de atraírem possíveis pretendentes:
ומזה הטעם ראוי למחות לנשים המשוררות לכלות לפני האנשים רק הבתולות שמותרים בזה כדי לחבב הבחורים לקפוץ עליהם לשם אישות
Ao ler estas palavras, entende-se porquê os círculos ortodoxos rejeitam o estudo da história. O trecho acima é de autoria de um importante Rabino Ortodoxo alemão do século XV. Ele diz não considerar adequado homens e mulheres cantarem em um casamento dizendo que as mulheres estavam cantando com homens nos casamentos. Contudo, ele afirma que as mulheres solteiras devem ser encorajadas à fazerem. Dito isto, pergunto: Como buscar alguma reconciliação com os grupos ortodoxos que proíbem as mulheres de cantar? Como dialogar com os grupos que permitem que apenas os homens cantem em seus casamentos, deixando as mulheres num local em separado para, segundo eles, proporcionar um ambiente kosher?
O Rabino Avraham Abele Gombiner (Polônia,1633-1683), concorda com o Rabino Lurie e sugere uma interpretação às palavras de Rashi sobre a cantoria de Miriam: Aparentemente, quando Miriam disse “Rendamos louvores à D’us”, ela não estava se dirigindo aos homens, uma vez que, isto não seria permissível para a época. Assim, podemos concluir que Miriam estava convocando as mulheres para cantarem.
O Rabino Gombiner sugere que a proibição do canto feminino é restrito para as situações em que a mulher cante sozinha, visando assim, impedir uma possível atração pela mulher que esta cantando. Esta afirmativa não poderá portanto ser aplicada quando há duas ou mais vozes envolvidas, dado que neste novo cenário as vozes acabam por se tornarem indistinguíveis (isto corrobora com o Talmud). O Rabino Moshe Sternbuch (Londres, 1926) atesta que entre os judeus ashkenazis, as mulheres cantavam apenas à mesa do Shabbat, mostrando que eles seguiam a prerrogativa defendida pelo Rabino Gombiner (Teshuvo VeHanhagot, 5:74).
Outro famoso rabino que ficou perturbado com a cantoria de Miriam na presença dos homens foi o Rabino Yehonatan Eybeschutz (Polônia, 1690 – Alemanha, 1764). Em seus comentários sobre a Torá, ele escreveu:
גם יש לפרש דלכך לקחו דוקא הנשים תופים בידם ולא האנשים דאיכא קול באשה ערוה והם היו שוררים ומנגנים ולכך לבל להכשיל אנשים לקחו בידם תפים לבל ישמע קולם
“O uso dos tamborins pelas mulheres teve por objetivo encobrir o canto feminino. Assim, elas não trariam obstáculos às preces dos homens”.
O Rabino Haim Yosef David Azulay (Jerusalém, 1724 – Itália, 1806), em seu Homat Anakh da Torá, discorda das tentativas de categorizar a cantoria de Miriam como indecente ou indutora de pensamentos imorais, vejamos:
הרא“ם ז“ל כתב בפירוש מאמר המכילתא דמרים אמרה כל השירה וכן מטים דברי רבינו בחיי ז“ל… ומ“ש הרב זית רענן דקול באשה ערוה לא שייך הכא דאיכא אימתא דשכינתא
O Rabino Eliyahu Mizrahi afirma que Miriam cantou todo o seu louvor, abordagem esta que corrobora coma opinião de Rabbenu Bahya (autor de Zayit Raanan). Segundo Bahya, a falta de modéstia não se aplica à Miriam, dado que os homens estavam em um estado de revência ao Eterno.
O êxtase provocado pela oração ou pelo estudo da Torá é descrito pelo Rabino Azulay como um fator que impede que o homem exerça a sua inclinação ao mal. Considerando que os israelitas estavam em um estado de elevação espiritual, eles não cederiam as atrações sexuais ou pensamentos impuros pelo simples fato de estarem ouvindo o cântico das mulheres.
Evidente que a proibição Talmúdica teve por princípio evitar que as orações pessoais dos homens pudessem sofrer eventuais interferências femininas. Lamentavelmente, a ideia evoluiu ao ponto que os homens simplesmente proibiram o canto feminino, privando as nossas mulheres a umas das necessidades mais essenciais da humanidade. Sim, ao longo da história judaica alguns rabinos ortodoxos foram negligentes, enquanto outros buscaram exceções razoáveis para tentar encontrar uma solução racional à este assunto. Vimos aqui algumas destas: mulheres cantando juntas, cantando com instrumentos musicais, cantando para louvar à D’us, cantando para promover o amor e cantando na frente dos homens quando estes se encontram em um estado espiritual elevado, o que os alçaria para um patamar acima dos sentimentos mundanos.
Vale a pena concluir com essa bela passagem do Zohar (Vol. III, 167:2), onde o autor descreve os palácios celestiais das mulheres justas:
בכל יומא ויומא אודת ומשבחת למארי עלמא איהי וכל אינון נשין די בהדה ושירתא דימא מזמרין בכל יומא ואיהי בלחודהא אמרת מהכא ותקח מרים הנביאה וגו‘ את התוף בידה וגו‘ וכל אינון צדיקייא די בגן עדן צייתין לקל נעימו דילה, וכמה מלאכין קדישין אודאן ומשבחן עמה לשמא קדישא, בהיכלא אחרא אית דבורה אוף הכי וכל שאר נשין בהדה אודן ומזמרן בההיא שירתא דאיהי אמרת בהאי עלמא, אי רבי אי רבי מאן חמי חדוה דצדיקייא ודנשין זכיין דעבדין לגבי קודשא בריך הוא
“Três vezes por dia, ela canta a canção do mar de juncos… ela e todas as mulheres que estão com ela. Miriam pegou o pandeiro e todos os homens justos ouviram o seu cântico agradável e todos os santos anjos louvam à D’us com ela”.
Não me atrevo a descrever o que seria um mundo perfeito mas… certamente neste cenário utópico, as mulheres cantariam os seus louvores de gratidão à D’us, enquanto os homens apenas as escutariam.
Rabino Haim Ovadia
Traduzido por Eduardo Gentil
Notas:
O texto em português do artigo “A Musica de Miriam: a voz oculta das mulheres” é uma tradução livre da Torah VeAhava – Brasil.